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A escuta transforma realidades

Essa coisa da escuta é curiosa. Rolando a tela da minha modesta rede social, vejo que a palavra escuta aparece muitas vezes nos discursos. Sempre em tons de relevância, daquela coisa de que é importante escutar. Todas, sem dúvida, com intenções muito honestas e legítimas. Porém, minha sensação circulando por aí é de que estamos nos escutando cada vez menos. Até chegamos a ouvir, mas não a escutar. Na vida pessoal, nos círculos de amizade, no trabalho, na família, escutar tornou-se ato raro.


Em uma outra época - quando não se corria tanto - o escritor Eduardo Galeano, afirmou que a capacidade de escutar era o que definia uma pessoa culta. Segundo o uruguaio, é a sensibilidade de escutar "as vozes da natureza da qual faz parte" que marca a presença de uma pessoa culta. Disse: "Eu conheço uma quantidade de doutores que são de uma incultura tenebrosa. Por outro lado, conheço pessoas profundamente cultas que não sabem ler nem escrever ou lêem e escrevem mal. Por quê? Porque culto é aquele capaz de escutar o outro, capaz de escutar as vozes da natureza da qual faz parte. Isso é ser culto para mim. Não aquele que acumula conhecimento"


A frase é bonita, sem dúvida, mas talvez nos distancie da importância desse assunto, criando a imagem de uma idealização inatingível. Tipo aquele ser sublime, capaz de escutar e acolher tudo o que cruza o seu caminho. Mas somos de carne e osso e é preciso estar atento; explico por quê. Não existe civilização que não tenha histórias: das margens do Rio Congo, passando pelas dinastias chinesas, a Grécia antiga e os povos originários do Alto Amazonas, todos contam suas histórias que servem como bússolas a seus povos. É impossível pensar em um mundo sem histórias, tanto assim que uma das principais estratégias dos colonizadores passava pela tentativa de apagamento das histórias dos povos colonizados, borrando seus mitos, sua religiosidade, sua língua materna, seu nomes etc.  Mas porque entrei nesse assunto da história? Por que onde existiu história existiu escuta. A escuta, assim como as histórias, esteve presente em todas as civilizações, servindo como um elo comunitário, uma experiência de compartilhamento da vida em sociedade.


Hoje em dia a coisa anda mudando. O tempo acelerado, as comunidades enfraquecidas e o culto a individualidade, contribui para essa desatenção ao que se passa com o outro e também dentro de nós, com nossas próprias histórias. A possibilidade de editarmos a vida e parecer ser algo que não somos nos distancia do que sempre nos aproximou: A experiência de viver. Sem a escuta não há história, sem história o mundo bambeia em suas pernas frágeis.


Precisamos escutar não porque  “é algo muito importante na vida profissional”. Precisamos escutar para voltar a contar histórias. Para que história do outro exista e para nossa própria história também se levante. Para isso,  não precisamos de uma parafernália técnica. Não necessitamos de ferramentas de escuta “ativa”, mas de interesse genuíno ao outro. E isso requer um grande senso de responsabilidade e de trabalho de si mesmo, ou seja, dar a  volta em nossas feridas narcísicas e colocar o corpo no mundo. Pequenas escutas transformam o clima em comunidades, grupos, famílias e  organizações. A longo prazo transformam culturas. Desaceleram o tempo, legitimam dores, experiências, acolhem nossos erros,  aplacam solidões e isolamentos, tornam a vida mais interessante a dá dignidade a experiência de viver. No fundo, falo de cuidado. 


Não somos o Dalai Lama e não temos a vocação para uma vida monástica. Possivelmente as circunstancias nunca serão as ideais, ainda assim é preciso escutar e isso requer trabalho e insistência. Escutar é colocar um ponto-e-vírgula nesse texto corrido do cotidiano. A atenção é o cartão de visita de nossa melhor versão.


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