Além da idealização: O cuidado real para transformar o mundo
- rodrigocarancho
- 13 de ago. de 2024
- 3 min de leitura
Pense na imagem de uma sábia benzedeira octogenária, que dedicou sua vida ao cuidado da dor alheia. Uma pessoa sublime e elevada que trata todos e tudo com atenção. Resistente e incansável, ela abre mão de si mesma para cuidar do mundo. Parece ser feita inteiramente de amor ao próximo, uma figura imaculada.
A imagem de alguém que cuida como um ser passivo, resiliente a qualquer custo e com o perfeito equilíbrio de seu mundo emocional é uma idealização comum quando falamos de cuidado. A ideia de encontrar alguém maior que nós e próximo da perfeição talvez tenha relação com nossos instintos mais primitivos e suas ânsias por proteção, ainda que ilusória.
Essa ilustração ideal, representada pela anciã benzedeira, nos remete a outra figura também idealizada nos discursos de amor incondicional e instintivo: a mãe. Muitas vezes associada, inclusive em apelos comerciais do mês de maio, a uma figura sublime e à prova de tudo. O reforço constante dessa imagem contribui para a manutenção de um sistema maior do que nossos olhos podem alcançar. Basta lembrar que, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua de 2019, realizada pelo IPEA, as mulheres no Brasil dedicam, em média, 61 horas por semana a trabalhos não remunerados de cuidado.
Como toda idealização, esta também tem seu prazo de validade. Pessoas são complexas. Pessoas que cuidam também. Nosso universo subjetivo é uma ventania de experiências, símbolos e significados. Somos contraditórios e muitas vezes não encontramos coerência entre o falar e o fazer. Nosso corpo cansa e se exaure. Amamos e desamamos. Não conseguimos ser felizes o tempo todo, às vezes em tempo algum. Por vezes, somos moralistas e mesquinhos e temos medo de sermos abandonados. A lista de características que quebram a idealização é longa, porque estamos falando da própria vida e da ampla beleza de suas oscilações. Isso não nos impede de sermos sensíveis à dor do outro, nem é um obstáculo ao amor ou à gentileza. Isso apenas nos diz que estamos vivos. Na natureza não existe linha reta.
O cuidado é uma necessidade, um direito e um trabalho. Um compromisso que requer um pensamento crítico e complexo, e isso exige, novamente, dedicação. A tentação de cair em idealizações e análises simplistas segue a toada das relações que estabelecemos neste universo de informações em que estamos inseridos. A velocidade do cotidiano muitas vezes impede que aprofundemos nossas raízes para escutar o que de profundo a Terra nos fala, resultando em um pensamento e ato rasos que normalmente se perdem nas ideias de sim e não ou de bem e mal. Isso nos afasta do cuidado.
A idealização do cuidado como algo sublime e imaculado, exemplificada pela figura da benzedeira ou da mãe perfeita, é uma construção que ignora a complexidade e a realidade dos seres humanos que praticam o cuidado. A visão de um cuidado puro e desinteressado muitas vezes esconde as dificuldades e contradições inerentes a esse papel. A realidade é muito mais multifacetada, com pessoas que cuidam enfrentando exaustão, emoções conflitantes e limitações pessoais. Para realmente entender e valorizar o cuidado, é necessário reconhecer e integrar a diversidade das experiências humanas, adotando uma abordagem crítica e holística. A Escola Aberta do Cuidado propõe exatamente isso: um diálogo interdisciplinar e a valorização dos saberes tradicionais, promovendo uma visão mais rica e realista do cuidado que vai além das idealizações simplistas. Ao fazer isso, abrimos espaço para uma prática de cuidado mais genuína e fundamentada, alinhada com a complexidade da vida e suas nuances.
No dia 29/08, iniciaremos mais uma turma da Jornada Caminhos do Cuidado que será online e ao vivo. Contaremos, ao longo de três meses, com a companhia de mestres e mestras do cuidado do Brasil Profundo que compartilharão conosco suas histórias repletas de conhecimento e sabedoria, mas sobretudo de vida real e complexa. Serão fontes de inspiração para pensarmos e agirmos a partir de uma postura de cuidado em um mundo em constante transformação.
Rodrigo Carancho
Fundador da Escola Aberta do Cuidado
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