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Clementina de Jesus e o cuidado no fazimento do Brasil

Por Rodrigo Carancho, fundador da Escola Aberta do Cuidado

Que este território galgou degraus de violência até tornar-se a nação Brasil não há dúvida. Cai por terra qualquer visão romântica do processo de colonização ao nos depararmos com as evidências histórias. Sobretudo, a partir da ocupação inicial na agressão deliberada aos povo originários e no processo da escravidão, chaga que teima em não fechar. 

Porém, no areal complexo da vida, por mais violência que exista há sempre um antídoto que brota resistente, obstinado e incansável: o cuidado. Insisto em dizer que nossa espécie sobreviveu até aqui porque soube cuidar, conviver, construir coletividade e maneiras de resistir as intempéries da vida. É no tensionamento, na contradição e na incoerência da existência que germina a mais pura semente do cuidado.  Semente que atravessa gerações no rio da memória. 

Um exemplo é a história de Clementina de Jesus, dona de uma voz inconfundível e de potência ancestral, que nasceu em Valença no interior do estado do Rio de Janeiro. Território negro e jongueiro. A menina Clementina cresceu ouvindo os cantos de sua mãe enquanto lavava roupa na encosta de um rio. Mais tarde, mudou-se com a família para o tradicional bairro de Oswaldo Cruz na capital do estado, onde passou a frequentar um colégio semi-internato de Santo Antônio. Assim, Clementina se formou em uma fé católica doutrinada, mas na vivência dos cantos de terreiro e nos simbolismos da cultura negra do Vale do Paraíba. O resultado dessa mistura andou junto com Clementina pelo resto de sua vida. Já cantora, católica assumida e devota de Nossa Senhora Aparecida, Clementina se torna conhecida como uma personificação da herança do continente africano na musica brasileira. O percussionista Naná Vasconcelos, que participou do LP “Marinheiro Só” (1970), chegou a declarar que Clementina “é a prova que a África é a espinha dorsal da nossa cultura”. Clementina seguiu caminhos diferentes de suas contemporâneas cantoras de rádio e ousou ser quem era, abraçando sua história e cantando seu povo. Em entrevista concedida a TV Tupi em 1975, Clementina disse que nada dela se separava “A Clementina cantando, lavando, cozinhando é sempre a Clementina”. A originalidade e o timbre inigualável foram suas marcas registradas. João Bosco, compositor ícone da MPB, reverenciou a Rainha Quelé, lembrando que o encontro com ela o fez encontrar algo esquecido em si. A convivência com Clementina, seu ritmo, seu jeito e sua dança ampliaram sua visão de mundo e sua musicalidade.

Uma mulher negra, de voz grave que acendia velas para Nossa Senhora Aparecida, mas cantava terreiros, encantarias e era atravessada por palavras em Iorubá, poderia ser uma contradição para uns, mas no fundo era sua própria identidade existindo. Chamo atenção para a dimensão memória do cuidado, uma tocha acesa a frente do caminho. Dos pequenos ritos, dizeres e palavras passadas como bússolas de geração em geração. A mãe, Dona Amélia, lavadeira de beira de rio atravessou a vida com Clementina, viva em sua voz. A miscigenação cultural e o sincretismo não são processos que devem ser romantizados, mas reconhecidos como marca da violência neste país. Contudo, é inegável que desse trauma surgiu uma quantidade enorme de produção de cuidado, de saídas, de escapes, de memória e de beleza. 

Longe de ser um ato isolado, o cuidado é a sustenção da vida, uma posição em relação ao mundo a as nossas próprias raízes. O cuidado e não só a violência formam a história do nosso povo. Assim como nossa personagem, temos tantas outras Brasil a fora: parteiras, benzedeiras, cantadores, poetas, batuqueiros que trazem memória de longe e tem uma outra versão da história para nos contar. Existem muitas forma de cuidar. 

A propósito, hoje é 25 de julho, dia da mulher negra, caribenha e latino-americana.

Viva Clementina, viva o cuidado brasileiro!

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