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Confesso que vivi - Dona Cida e a dignidade em contar a própria história

Confesso que vivi é o título do livro de memórias do poeta chileno Pablo Neruda, publicado postumamente no ano de 1974. O título por si já um poema, haja vista a beleza de contar a história de alguém que atravessou a vida e suas intempéries, ainda que esse alguém seja si mesmo. Porém, esse pequeno texto não é sobre o poeta, famoso e conhecido das multidões, tampouco sobre um homem que ganhou protagonismo político e literário. Esse texto é sobre uma mulher que atravessou o oceano do tempo e carrega ainda hoje em suas mãos, olhos e saudades, a dignidade de alguém que pôde chegar aos 100 anos e contar o que viveu. Contudo, alerto que não tenho a pretensão de contar a história de sua vida, coisa grande e maior do que sei escrever, mas sim a pequena história de meu encontro com ela.


No dia em que marquei de conversarmos, eu a aguardava na sala de sua casa na Brasilândia em São Paulo. Fiquei em pé, esperando naquele cômodo emoldurado por cortinas brancas e pequenos enfeites na janela. Uma cristaleira antiga, um sofá azul e cadeiras de madeira davam o tom de que não era uma jovem com quem eu conversaria. Esperei por dois minutos até vê-la atravessando lentamente a soleira da porta, vestindo um casaco vermelho, uma saia com detalhes floridos e um sapato com um breve salto. Ainda arrumando seus cabelos, sorriu enquanto me olhava nos olhos e disse "Pra contar história a gente tem que tá arrumada”. Não era uma mulher, mas era o próprio mundo quem eu testemunhava naquele momento. 


Dona Cida chegou a esta vida pelas mãos de uma parteira no ano de 1923, uma centenária, portanto. Aliás, no momento em que este texto é publicado, Dona Cida já está com 101 anos. Uma mulher negra, nascida em Caçapava no Vale do Paraíba e que lembra com vivacidade de detalhes de sua infância e juventude. Das lembranças bonitas, como a relação com Emília, sua irmã mais velha e sua protetora,  até as mais duras, como quando saiu de casa aos 12 anos para trabalhar em “casa de família”. Recorda das adversidades inúmeras, mas também celebra sua saúde e seu orgulho de ainda cozinhar: "Gosto da minha comida do meu jeito. Hoje em dia não tem tempero direito, antigamente a gente temperava diferente a comida e esse é meu jeito de cozinhar". Seus olhos vão mais longe quando conversamos sobre sonhos: "Eu tinha 6 anos de idade quando sonhava em ser professora. Eu brincava com os gravetos e as pedrinhas pensando que era meu material".


Mas é quando eu pergunto se acha que cuidou de alguém na vida que Dona Cida me dá a sua resposta mais longa. Em um fôlego que durou mais de 10 minutos vai contando as tantas vezes que cuidou de alguém: Cozinhar, limpar a casa, cuidar de criança, acompanhar uma amiga, dar banho em alguém doente, cuidar de pessoa idosa, ajudar vizinhos etc. Uma mulher que passou a vida cuidando. Impossível não lembrar que no Brasil de hoje quase 80% do trabalho de cuidado é realizado por mulheres que, na maioria das ocasiões, não são nem ao menos lembradas ou reconhecidas da importância fundamental de sua dedicação para sustentação da sociedade, incluindo a economia. É sempre importante lembrar que se você está lendo esse texto agora é porque alguém cuidou de você. Dona Cida foi esse alguém na vida de muitas pessoas.


Engana-se quem pensa que uma mulher centenária é frágil e de gestos lentos. Quando perguntei se ela tinha medo de algo, me interrompeu para responder com o dedo em riste e voz firme "Não tenho medo de nada. Já enfrentei homem e tamanho não é nada pra mim. Até hoje!!!". Aliás, uma pessoa frágil não chegaria até onde Dona Cida chegou. Para cuidar é preciso força. Ser forte o bastante para o cuidado é assumir o compromisso maior da vida. Na resposta que me deu, era essa própria energia vital quem me respondia, sem gracinhas ou romantismos, o papo reto que é viver. E se no meio de tudo isso ela se arrepende de algo ou mudaria algo? “Eu tô em paz com a vida que tenho. Tiraria um sofrimento ou outro, mas não mudaria muita coisa. Tenho saúde e minha família é grande".


Venho há tempos falando da relação entre cuidado e nossa capacidade de contar histórias. O quanto é fundamental lembrar e contar essas lembranças para nos situarmos no mundo e em nosso próprio valor. Esse ato de cuidado e autocuidado tem ainda mais riqueza quando nos referimos às pessoas mais velhas, muitas vezes relegadas a um papel coadjuvante na vida comunitária. No entanto, são essas as pessoas verdadeiramente protagonista: Quem firmou caminho e abriu picada para nossa caminhada e quem cuidou quando ninguém mais estava lá. Pois naquela tarde nublada de domingo, enquanto escutava Dona Cida, tive o privilégio de testemunhar o valor de uma pessoa que muitas vezes espremia os olhos para tentar lembrar de algo. E quando notava meu interesse em sua história parecia querer ir cada vez mais longe. Naquele dia, talvez eu tenha cuidado de Dona Cida; ela certamente cuidou de mim.


Hoje, Dona Aparecida da Conceição Pires vive no bairro que fundou, em uma casa com um jardim repleto de pequenas belezas à frente. Vive rodeada por suas filhas e filhos, netas e bisnetos. É conhecida em toda a vizinhança. "Foi assim a minha a vida. Eu vou tocando e me Deus me dá saúde".


Salve os mais velhos!


O cuidado é o futuro.


Rodrigo Carancho

Fundador da Escola Aberta do Cuidado









 
 
 

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