Cuidar do outro e a difícil tarefa de não esperar nada em troca
- Vinicius de Oliveira
- 30 de nov. de 2022
- 4 min de leitura
Os caminhos que me levaram até esta mulher começaram anos atrás. Eu já tinha ouvido de Dona Zefa da Guia, parteira afamada das bandas do sertão nordestino. No ano passado, quando ainda estava no planejamento da viagem, topei com o seu retrato. Aquele rosto forte, com traços indígenas, me prendeu um bom tempo da atenção. Decidi que iria conhecê-la.
Ainda era madrugada quando saí, rumo ao sertão, da cidade de Poço Redondo no Sergipe. O frentista de um posto de gasolina olhou para mim, olhou para a kombi e perguntou:
– Você vai pra Serra da Guia?
– Agora! – Respondi enquanto enchia meus reservatórios de água.
– Ô companheiro, cê vai andar muito.
Fiz alguma brincadeira com ele e segui meu caminho. Mas o amigo frentista estava certo. Levantei poeira em um labirinto de estradas de chão emolduradas por eretos mandacarus. No longe, o vulto serrano me dizia que era para lá que eu devia apontar o nariz da kombi. Segui o rumo.
Quase chegando no povoado, fiz uma parada para fumar um paiêro e sentir o vento do sertão, que é um verdadeiro bálsamo, um elixir para o calor que já começa cedo. Sentado no para-choque, eu pitava e olhava aquela vegetação cinzenta e retorcida, quando de repente uma coruja pousou no moirão bem na minha frente. Ela ficou algum tempo por ali, me mostrando que o estrangeiro era eu. Mas ao mesmo tempo era como um sinal. A mística daquele bicho foi o prenúncio da força de um encontro que eu teria dali alguns minutos.
Cheguei na casa de Dona Zefa em uma comunidade quilombola no pé da Serra da Guia.
Parteira, curandeira e conselheira. Mulher de 72 anos, parteira desde os 11 e rezadeira desde os 7. Na frente da casa, algumas pessoas aguardavam sua vez de serem atendidas. Fiquei ali esperando, enquanto ouvia uma voz enérgica de dentro da salinha onde ela recebia todos. A voz parecia de uma pessoa grande e forte. Esperei por duas horas até que Dona Zefa veio na minha direção: – Meu amigo veio de longe – ela dizia enquanto me dava um abraço que quase me partiu ao meio. A força física daquela senhora de 72 anos corresponde a uma espécie força de vida que senti enquanto estava com ela. A presença atenta de Dona Zefa faz com que o seu interlocutor se sinta literalmente ouvido. E foi assim, com uma atenção irrepreensível, que ela ouviu cada parte do porque eu estava ali. Ela aceitou gravar uma entrevista e escolheu a sombra de uma árvore nos fundos da sua casa. Um lugar perfeito, com a serra ao fundo e o vento acalentando os compassos do meu coração.
“É como um chamado que eu tive. Naquele tempo eu vi que era isso que eu queria fazer da minha vida”
Dona Zefa fala com zelo de sua trajetória. Tratando todos esses anos de história de cuidadora, como uma verdadeira vocação. É bonito ouvi-la falar das sua relação com as mulheres:
“A gente que é mulher precisa se ajudar. Eu sou parteira desde os 11 anos de idade e nunca virei as costas para uma mulher que precisa de ajuda. Nenhuma criança ou mulher morreu em um parto que eu fiz. Eu, em tudo que eu faço eu boto amor na frente. A gente precisa se ajudar”
Dona Zefa já fez partos em Sergipe, Alagoas, Bahia e Pernambuco. “Teve mês que fiz 25 partos”. Além disso, seguidamente é convidada para dar palestras em universidades onde fala sobre parto, cuidado e saberes tradicionais. Apesar de ser analfabeta, Dona Zefa não esconde o orgulho do conhecimento que adquiriu ao longo da vida.
“Sou analfabeta e não tenho nenhuma vergonha disso. Em compensação Deus me deu o dom de ajudar o outro e eu faço isso com amor, força e alegria. Eu tenho conhecimento da vida e uso isso para ajudar os outros”.
Dona Zefa é uma cuidadora. Dessas que eu imaginava encontrar pelo Brasil a fora. O meu encontro com ela me mostra o valor das ligações que fazemos com o outro. O Brasil é muito grande e de cultura muito diversa, mas as coisas que nos ligam são muito maiores do que podemos imaginar.
Já para o final da conversa, pergunto para ela qual a característica mais importante em uma parteira:
– Coragem! Coragem para ajudar e não esperar nada em troca. Coragem para ser chamada a qualquer hora do dia e da noite e não achar isso ruim. Coragem para servir.
– A senhora se considera uma mulher corajosa?
– Corajosa e servidora. E quero viver mais para ser mais.
Nos despedimos com uma foto e outro abraço carinhoso.
– Volte, meu filho.
– Um dia eu volto, Dona Zefa. Um dia eu volto
Cuidar cura
Rodrigo Carancho, autor deste texto, é curador e co-fundador da Escola Aberta do Cuidado. Esta narrativa é resultado de uma viagem-pesquisa que realizou pelo Brasil profundo e que ganhou o nome de Andarengo – Narrativas de Vida e os Caminhos do Cuidado.
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