top of page

Cultura do cuidado: De uma visão romântica a uma escolha constante

Por Rodrigo Carancho, fundador da Escola Aberta do Cuidado.


Não são raras às vezes que recebo grupos em cursos e formações que chegam com uma alta expectativa sobre o cuidado e suas práticas a partir de uma visão romântica e que compreende o cuidado como algo inato e natural ao ser humano. Como se o nosso destino fosse cuidar. Esse entendimento recebe diferentes nomes como empatia e acolhimento, mas muitas vezes é um verniz de uma camada moral ou produtiva do cuidado que não leva em conta a complexidade e o caráter político do cuidar. Como aquelas coisas que a gente fala - e segue falando - sem ao menos saber o por quê.


Claro que é tentador pensar que as coisas são fáceis e que basta um clique para espalharmos nossas boas vibrações por aí, cuidando de si (porque agora dizem que isso é importante) e cuidando dos outros (porque agora isso também é importante).


Ora, eu não duvido - me parece óbvio - da importância do cuidar. Haja vista a própria história da humanidade e o quanto o cuidado foi fundamental para chegarmos até aqui. No entanto, para essa idéia cair no umbral de uma receita do tipo “Cuide assim, esse é jeito certo” ou ainda “Você precisa cuidar e tralalí-tralálá” é muito fácil. No fim das contas, o cuidado pode virar um grande jargão de redes sociais que é um espaço superficial por excelência.


Kwame Apiahh, filósofo de origem ganesa, diz que a atenção é o que de mais valioso podemos oferecer ao outro. O pensador defende que é por via da atenção que conseguimos nos aproximar de uma relação mais cuidadosa com o que habita o lado de fora de nossa pele. É a partir da atenção que conseguimos exercer o reconhecimento e o respeito pela alteridade.  De atenção também fala o Seu João de Bichinho, artesão do norte mineiro.  Ele diz que é preciso saber escutar a madeira antes transformá-la em algo e que para isso é preciso de atenção aos mínimos detalhes. O detalhe, para ele, é o espírito do trabalho e sem atenção o detalhe nem sequer é visto. Essa mesma atenção de que falam é a que hoje vem sendo colonizada pelas bigtechs, transformando-se em moeda valiosa e elemento de disputa no marketing digital. Em um mundo com inúmeros estímulos, cores vivas, notificações constantes, infinitas ofertas e sons dos mais variados, é a distração o imperativo vigente. Assim, no meio desse pisca-pisca que clama por ser visto, andamos distraídos, não por relaxamento ou ócio, mas por excesso. Empapuçados de informações e afazeres, perdemos a chance da atenção ao outro e também a nós mesmos.


De que estariam falando Kwame Appiah e João de Bichinho se não de cuidado? A atenção colocado ao presente, seja com o outro ou com um objeto de trabalho é o sinônimo de uma relação de cuidado e uma postura de interesse ao mundo fora de nós mesmos.


Uso o exemplo da atenção e seu momento frágil nos dias atuais, para dar complexidade a essa conversa. Me refiro ao cuidado como uma ação. Um movimento em direção algo, alguém ou a si mesmo. Um movimento que requer vontade e isso implica escolha. O cuidado não é um sentimento ou algo que brota naturalmente dentro de nós como um ser sublime e elevado, mas um aprendizado que se dá ao longo da vida e que se insere em um complexo contexto cultural-comunitário-familiar. Aprende-se a cuidar, bem como a descuidar.


Exercício de responsabilidade, o cuidado requer uma escolha constante. Um caminho que se faz na medida em que é percorrido. Muito embora o cuidado seja um elemento fundamental na organização de uma sociedade (ato político, portanto) é na escolha solitária que se consolida e vira verbo: Cuidar. Contrário dos clichês professorais, o que o cuidado quer da gente é seguimos sendo alunos (aqueles que aprendem e seguem aprendendo a partir da escolha de aprender).


Mas se o cuidado requer atenção em movimento - como o artesão e o filósofo já afirmaram - como cuidar em um mundo de distrações e inteligências maquinárias? Deixo a pergunta em aberto a vocês. Como?


Se cuidar fosse instinto já teríamos a resposta, mas é trabalho de si no mundo.



Rodrigo Carancho

Fundador da Escola Aberta do Cuidado.

110 visualizações2 comentários

Posts recentes

Ver tudo

Um tempo novo, mas com raízes

Antes de ler: Esse texto é um recorte a partir do olhar de um homem branco/não indígena e que, embora conviva com o povo Guarani, não tem...

A escuta transforma realidades

Essa coisa da escuta é curiosa. Rolando a tela da minha modesta rede social, vejo que a palavra escuta aparece muitas vezes nos...

2 Comments


Conversava hoje com a mãe de uma criança que atendo e falamos sobre como as vezes queremos ver de tudo e consumir conhecimentos, mas quando uma situação relacionada a eles se apresentam na realidade, muitas vezes não conseguimos sequer os reconhecer. Fica a ilusão de que sabemos de alguma coisa por havermos tido esse contato informacional com algo. Talvez estejamos viciados em consumir essas informações, ideias, formulações e não nos atentamos para o que a vida de fato apresenta no nosso dia a dia, na realidade de cada um/a/e.

Like
Replying to

Muito bem apontado, Bia! A questão da informação (ou o excesso) muitas vezes ofuscando uma realidade que se coloca a frente e que requer de nós uma outra postura. Transformar informação em conhecimento é um dos desafios de nosso tempo.

Like
bottom of page