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Quando assunto é cuidado, onde estão os homens?

O cuidado é o trabalho mais antigo de nossa espécie. Desde o nascimento de um bebê até o apoio a indivíduos doentes, vulneráveis ou comunidades famintas, a necessidade de cuidar e ser cuidado persiste inalterada, seja hoje ou há 50 mil anos. Não há vida sem cuidado e nossa jornada até o presente é uma história complexa do fazer o cuidado para sobreviver. Nos dias de hoje, por exemplo, mal a comida é preparada e a fome para a próxima refeição já está posta à mesa; Bebês, mesmo com toda a tecnologia e assepsia hospitalar, seguem necessitando de cuidados desde o primeiro choro; Nossa morada (quando há) precisa de cuidados infinitos para não nos nos afundarmos em nossas próprias sujeiras; Amigos caem em poços emocionais e carecem de apoio e acolhimento em uma boa conversa; Nossos filhos sentem medo de monstros às 3 da madrugada. Coisas que movem nossas rotinas, mas que por vezes não reconhecemos como cuidado, muito menos como trabalho.

Em um relatório intitulado “Esgotadas" a Think Olga divulgou o resultado de uma pesquisa realizada em maio deste ano com 1078 mulheres, entre 18 e 65 anos de todo o Brasil e de diferentes classes sociais, raças e etnias. O objetivo da pesquisa foi traçar um panorama da saúde mental das brasileiras após a pandemia. Pesquisas como esta são interessantes porque testam nossas impressões e colocam a prova sensações que temos percebido em nossos círculos mais íntimos. No caso de quem vos escreve algo se confirmou: O relatório mostrou um importante nível de adoecimento e sintomas relacionados a quadros de saúde mental das brasileiras. As entrevistadas apontaram inúmeros fatores que contribuem para isso, mas no topo da lista está, além da questão financeira, a solidão frente ao trabalho de cuidado, ou seja, a realização solitária de ações para manutenção da vida. Isso envolve o cuidado com a casa, com os filhos e com os doentes da família, por exemplo. Um quadro que se agrava quando falamos de mulheres negras e/ou pertencentes às classes C, D e E.

O universo do cuidado está culturalmente (e não naturalmente) ligado ao feminino. Deriva esta característica da formação de uma sociedade machista que construiu suas bases na figura do homem como sujeito universal e viril e da mulher como subalterna, acolhedora e mãe. Nos anais subjetivos desta cultura fica inscrito que o homem pode ser tudo, menos mulher. Tudo o que lembra ou simboliza o universo feminino é vetado ao masculino, sob pena de ser expulso da “Casa dos Homens”. Logo, o cuidado sendo um atributo culturalmente feminino, é rechaçado pelo masculino que compreende que é a mulher quem deve dar conta da colossal tarefa prole/casa/saúde. (Maturana, 2004. Connel, 2001 Welzer-Lang, 2008)

Nos homens, a solidão também é um traço visível, porém uma solidão frente ao sofrimento. Um exemplo é a ampla literatura científica que aborda a relutância dos homens em buscar serviços de saúde, discutir questões íntimas ou expressar angústias. Algo que podemos perceber nos casos de suicídio: No Brasil, dados da Organização Mundial de Saúde apontam que os homens são a maioria dos casos de auto-extermínio, chegando a casa dos 78%. É notável que um padrão recorrente emerge: o silêncio que oculta as dores, criando uma ilusão de bem-estar aparente. É muito comum ouvirmos “Ele nunca falou nada, parecia que estava tudo bem”. A idéia de uma fortaleza, como o homem de Marlboro, segue viva nos imaginários de nossa sociedade. E se é fortaleza , não necessita de autocuidado, tampouco dividir com alguém as barras pesadas da vida. Dá-se conta, sozinho.

Diante dos avanços conquistados pelo movimento feminista e da evolução dos papéis das mulheres, não seria o momento de abordarmos não apenas os sintomas, mas a raiz desse profundo desequilíbrio coletivo e que afeta a todos? Mulheres cuidam e se sobrecarregam com o cuidado. Homens não cuidam e sofrem com a falta do cuidado.


Alerto que é comum discutirmos questões de gênero e ouvirmos o famoso "Ahh, mas não são todos os homens". Obviamente o que apresento aqui é um recorte baseado em evidencias que encontro em minha experiência. Nada é universal, mas há um padrão apontado nas pesquisas e na literatura que se repete e forma a estrutura de nossa sociedade.

Ao longo dos milênios, aprendemos que o cuidado não é uma virtude, mas a base de nossa sobrevivência e evolução. Portanto, à medida que contemplamos o passado, é crucial reconhecer que, independentemente das mudanças no mundo, o cuidado permanece como um pilar essencial de nossa humanidade. É, sem dúvida, uma lição que deve ser continuamente celebrada e honrada, não só pela mulheres, mas também pelos homens.


Importantes apontamentos:

*Este texto não se propõe a uma verdade hermética, fechado em si, mas o início de uma reflexão. Está repleto de apontamentos com base em pesquisas, autores e experiências que tive alcance. Leia com crítica, sempre.

* Sugiro a leitura de autores e autoras citados como Maturana, Welzer Lang, Gomes e Raewyn Connel


Rodrigo Carancho, fundador da Escola Aberta do Cuidado.


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