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Um tempo novo, mas com raízes

Antes de ler: Esse texto é um recorte a partir do olhar de um homem branco/não indígena e que, embora conviva com o povo Guarani, não tem a pretensão de traduzir um conhecimento tão múltiplo e complexo.


As estradas engarrafadas, as compras, as superstições e a correria são sinais de que 31 de dezembro chegou. O ano novo será comemorado e o ano velho passou para nunca mais voltar.  Nosso calendário avisa que um número será acrescentado ao ano, em uma contagem que anda sempre para frente, tempo em que tudo será diferente. Porém, o ano novo chega e para a maioria da população nada de extraordinário acontece: os problemas se repetem e as vezes até pioram, as promessas são engolidas pelas circunstâncias de uma vida acelerada, as tarefas pesam e o "novo" fica restrito às datas, enquanto a vida real parece correr em uma esteira que, apesar dos nossos desejos e intenções, se mantém no mesmo lugar. Por outro lado, inúmeras mudanças mostram que a vida caminha: as pequenas alegrias do cotidiano, os filhos crescendo, aquele ressentimento que deu sinais de estar indo embora, uma gentileza aqui ou ali. As pedras miúdas sempre traduziram melhor a experiência humana do que as grandes rochas.  Na vida real, com exceção do amanhecer, nada é da noite para o dia.


Em uma outra perspectiva, nessa época do ano, existe um povo aqui mesmo no Brasil que está celebrando seu novo ciclo. O povo Guarani, desde o início de setembro, recebe a chegada do Arapyau, o “Tempo novo”. Momento em que inúmeras aldeias se reúnem na Opy, Casa de Reza Guarani, para um ritual que dura dois ou três dias em celebração ao tempo de renovação, um tempo solar, de abertura e renascimento. Época em que estruturas serão renovadas, sementes serão plantadas e espécies irão acasalar. O Arapyau corresponde a primavera e ao verão. É tempo de expansão.


O Arapyau é uma parte de algo mais amplo e complexo que compõe a idéia de tempo Guarani. A tradição e a sabedoria desse povo diz que o tempo se move em modo espiral e que o novo só existe porque em algum momento existiu um tempo velho ou Araymã, época de recolhimento, de estar mais dentro de casa.  O Araymã corresponde ao outono e inverno. Aqui, é tempo de introspecção.


Obviamente que os Guaranis não organizam sua vida burocrática e pragmática em função desse ciclo tradicional e adaptam seus cotidianos ao calendário gregoriano. Contudo, essa dimensão de tempo trata de algo muito mais profundo e que pode ensinar muito aquela sociedade que, esbaforida, sonha em mudar tudo no seu “Reveillon”.


  • Uma das lições internalizadas nessa idéia de tempo é constância no ciclo de morte e renascimento, seja nos aspectos subjetivos, simbólicos ou até mesmo físicos. Quantas mortes vivemos ao longo de uma vida? Quantas coisas vão ficando para trás na medida que se transformam?


  • O passado é tempo presente. A relação com os mais velhos é algo muito caro para o povo Guarani. Entende-se mais velhos não só as pessoas que chegaram a determinada idade, mas toda a memória desta comunidade que sustenta seu modo de vida há milhares de anos, atravessando violências impostas pela colonização. Um tempo que circula traz sempre memória ao presente não deixando o sujeito se esquecer de onde veio, tampouco quem é. Mesmo na expansão do tempo novo os mais velhos estão presentes. Como me disse o Karaí Verá Mirim “Velho para nós é elogio”. Ao contrário disso, na sociedade não indígena, o velho é um problema. Se luta contra o tempo que passa e as pessoas idosas, já não mais em idade capital-produtiva, são muitas vezes relegadas ao lugar de alguém que já viveu o que tinha que viver.


  • Um amanhã a partir de ontem.  Mesmo diante das adversidades, há sempre a possibilidade de um novo começo, um "Arapyau". Isso nos ensina a importância da resiliência, confiando que o futuro pode ser construído com base no aprendizado do passado. Em um mundo onde o curtíssimo prazo é moda, a constância é uma virtude. Atravessar o tempo e seguir a caminhada é a própria representação do fôlego da vida.


  • O tempo não cura, mas pode trazer novas percepções sobre a ferida. O Araymã representa as experiências passadas e os desafios não resolvidos que carregamos. Já o Arapyau simboliza a renovação e a oportunidade de revisitar essas experiências com uma nova perspectiva. Assim, o tempo, segundo a visão Guarani, não apaga as marcas do Araymã, mas permite que elas sejam compreendidas e transformadas no Arapyau, trazendo crescimento e novas percepções.


O tempo, para os Guaranis, não é apenas um avanço constante, mas um espiral de renovação contínua, onde cada fim é também um novo começo e partir desse perspectiva não se faz como um simples processo de passagem, mas uma oportunidade para revisar e transformar nossas experiências, entender e acolher a memória do passado, e crescer com cada ciclo. Esse povo, que não separa experiência humana da natureza, vê toda sua percepção sobre a vida envolvida pelo grande espírito do tempo. Tempo é medicina. Tempo é cuidado.


Bem vindo, Arapyau!


Rodrigo Carancho

Fundador da Escola Aberta do Cuidado

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